Carf anula autuação fiscal contra o Grupo Coty por planejamento tributário abusivo
Fonte: Valor Econômico
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) anulou auto de infração
contra a Savoy Indústria de Cosméticos S.A., do Grupo Coty, dona de marcas
como Risqué, Monange, Koleston e Wella, em um caso em que a Fazenda
Nacional a acusava de planejamento tributário abusivo. O tribunal entendeu
que as operações feitas entre a Savoy e a controladora, a Coty Brasil, por preço
menor do que o de mercado são lícitas e válidas, mesmo que tenham como
único intuito pagar menos impostos.
A Savoy foi multada porque, segundo a fiscalização, teria subfaturado o valor
de venda dos produtos à Coty, a fim de reduzir artificialmente a base de cálculo
do PIS e da Cofins, que incidem sobre o faturamento. O preço das mercadorias
adotado entre as empresas do mesmo grupo econômico era em torno de metade
do praticado com outros fornecedores e chegou a ser, em algumas transações,
quatro vezes menor. Na visão da Receita Federal, tratava-se de planejamento
tributário abusivo.
Para o Carf, porém, a busca por economizar tributos, desde que sem fraude ou
simulação, é legítima. Segundo advogados, a discussão dos limites dos
planejamentos tributários é antiga e a jurisprudência é vacilante. Nas hipóteses
de ágio interno, por exemplo, em que há a compra de empresa por valor
superior para abater do Imposto de Renda (IRPJ) e da CSLL, o tribunal
administrativo é majoritariamente contrário aos contribuintes, mas existem
precedentes do Judiciário que validam a estratégia.
No caso da Savoy, a decisão, acrescentam especialistas, está de acordo com um
precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) que permite planejamentos
tributários com o objetivo de gerar economia (ADI 2446). Os ministros
permitiram ao Fisco desconsiderar atos praticados com a finalidade de
dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo. Mas estabeleceram que ele
só pode aplicar base de cálculo e alíquota em hipótese de incidência prevista em
lei e que tenha se materializado.
Tributaristas lembram que para o IPI, existe previsão legal para exigir um “valor
tributário mínimo (VTM)” a fim de evitar o pagamento a menor de tributos.
Mas não há norma similar para as contribuições sociais. Isso consta no acórdão
do Carf. “Não há critérios legais para a equalização dos preços praticados entre
partes relacionadas para ajustá-los a preços de mercado no caso de PIS e Cofins
monofásico", diz a decisão (processo nº 17095.720229/2022-79).
O auto de infração se refere aos anos de 2017 a 2019. Segundo a fiscalização,
“a estrutura criada pelo grupo empresarial visou resguardar o resultado
econômico e ao mesmo tempo, obter um menor pagamento de PIS/Pasep,
Cofins e IPI”. Por isso, ela recompôs a base de cálculo dos tributos usando os
preços de revenda da Coty. Aplicou multa qualificada de 150% e atribuiu
responsabilidade solidária entre as empresas, alegando fraude e conluio.
A Delegacia de Julgamento (DRJ) manteve a penalidade, apenas reduziu para
100% a multa qualificada, com base na Lei nº 14.689, de 2023. A Savoy recorreu
ao Carf, alegando a ausência de dispositivo legal que vede as operações entre
companhias do mesmo grupo e que permita o arbitramento da base de cálculo
do PIS/Cofins. Defendeu ainda haver propósito negocial para segregar as
atividades entre a entidade industrial e comercial e que não praticou fraude.
Os argumentos foram acatados, por maioria, pela 2ª Turma Ordinária da 1ª
Câmara da 3ª Seção do Carf. “O arbitramento e desconsideração do negócio
jurídico em razão de subfaturamento derivado de um planejamento tributário
abusivo, depende da comprovação da existência de fraude, dolo ou simulação
nas operações, como a inexistência de substância econômica nas atacadistas,
criadas apenas para simular operações e fraudar o Fisco”, diz o acórdão.
Houve divergência dos conselheiros Pedro Sousa Bispo e Fábio Kirzner Ejchel,
que votaram a favor da União. Na visão deles, o Fisco comprovou que as
operações foram simuladas, com o único objetivo de pagar menos tributo. “Os
fatos citados são suficientes e demonstram que a operação de venda da Savoy
para a sua controladora Coty não teve razão econômica ou propósito negocial,
mas visou tão somente a redução abusiva no pagamento do PIS e da Cofins”,
afirma Bispo, no voto.
O tributarista Maurício Faro, sócio do BMA e presidente da Comissão Especial
de Assuntos Tributários (Ceat) da Ordem dos Advogados do Estado do Rio de
Janeiro (OAB-RJ), diz que o julgamento difere bem a evasão (fraude) da elisão
fiscal. “É importante fazer a distinção do planejamento tributário lícito, aquele
que o contribuinte estuda e estrutura o negócio da maneira em que a carga
tributária é mais eficaz, para o ilícito, que ignora a ocorrência efetiva do fato
gerador, ou se pratica atos sem substância”, diz o advogado.
Para ele, a decisão derruba a percepção da Receita Federal de que os
contribuintes devem “necessariamente fazer as operações da maneira em que
houver a maior incidência de carga tributária”. “Ficou claro no voto condutor
do conselheiro Matheus Ziccarelli que não há que se falar em simulação se todos
os atos jurídicos foram perfeitamente realizados”, acrescenta.
Adolpho Bergamini, sócio do escritório Bergamini Advogados e ex-conselheiro
do Carf, diz que o empresário pode organizar suas atividades como bem
entender, com base no princípio constitucional da livre iniciativa. “Mesmo que
isso leve a uma diminuição dos tributos, não é um problema em si ou uma razão
de ilicitude”, afirma.
O limite do planejamento tributário lícito para um abusivo é a simulação,
segundo ele. “Se a empresa não existe, está só no papel, aí é um problema, é
fraude”, diz. “Mas se teve um preço que foi pago, houve o trânsito de estoque
da mercadoria, frete pago e teve todas as partes de uma operação mercantil -
compra, venda, pagamento, recebimento, transporte e assim por diante -, não é
um problema”, acrescenta.
Ele concorda com o voto vencedor, de que, como não há legislação que permita
o arbitramento de base de cálculo do PIS/Cofins, não há como impor a
tributação. “Na falta de uma norma clara, você não pode impor a tributação via
interpretação do fiscal ou de órgão julgador”, afirma Bergamini, reforçando que
o tema não é consenso. “Ainda é vacilante a jurisprudência e talvez não se
chegue a um consenso mesmo depois de acabados esses tributos, em 2027”,
completa, referindo-se a reforma tributária, que extinguirá o PIS/Cofins.
Procurados pelo Valor, o Grupo Coty e a Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional (PGFN) não deram retorno até o fechamento da edição.